A diferença entre narrativa e storytelling

No marketing, existe um fetiche generalizado por conceitos novos e disruptivos. Acompanho fascinado a vida útil dos conceitos cada vez mais curta. Assisti as agências de promoção virarem agências de BTL (bellow the line) para pouco depois, como um Pokemon que passa de nível, se auto proclamarem agências de live marketing, mantendo o seu core business inalterado.

Um exemplo clássico é o da Coca-Cola, que na década de 1950 já se apropriava de referências dos folclores nórdicos para lançar nada menos que o Papai-Noel, que em pouco tempo se tornou mais símbolo natalino do que o próprio aniversariante.

Essa gula do mercado por verbetes gourmet criou uma verdadeira indústria de facelift de conceitos antigos. Um dos meus preferidos é o storytelling, um dos recursos retóricos mais antigos da comunicação, mas que só foi ganhar um nome oficial recentemente.

Impulsionado pelo fenômeno das startups que se colocam na maioria dos casos como reação do homem comum ao establishment, o storytelling se tornou padrão dentro de qualquer empresa. Não existe start-up que se preze sem uma missão nobre e inspiradora ao som de ukulele na manga.

Surge porém um dilema ético com essa obrigatoriedade. Nem toda empresa ou produto tem uma bela história motivacional para contar, e quando é esse o caso, muitas delas inventam.

Fiz um tempo atrás campanhas para 2 produtos da mesma empresa que ilustram bem o que a diferença entre um brand story real e uma narrativa simbólica e sem vínculo com a realidade.

Uma brand story de verdade
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Reserva 51, a cachaça top de linha da Müller, foi desenvolvida despretensiosamente pelo fundador da então Destilaria Pirassununga. Os barris estavam esquecidos em um depósito da empresa por décadas quando funcionários da Müller os encontraram por acaso. A cachaça tinha se transformado em um destilado de altíssimo nível. Foi então batizada de Reserva 51 e colocada no mercado. Nesse caso, a brand story era real, meu papel foi só o de contar de um modo imediato, simples e atraente como tudo aconteceu.

E o espaço para a criação de uma narrativa
Proposta criativa para o Cognac Domus

O outro briefing que eu peguei na mesma semana era o oposto. Um produto que já existia no mercado há muito tempo mas que, apesar de vender um volume razoável, permanecia anônimo. O Domus, um cognac de cana com gengibre cuja dose custava em torno de 2 reais nos botecos das fábricas, obras etc (seu principal ponto de venda). O produto custa o dobro da cachaça 51 do mesmo fabricante em quase todos os botecos.

Segundo o cliente, existe uma hierarquia implícita dentro do ambiente do boteco. O cognac Domus, visto pelo frequentador de boteco como produto premium, se tornou símbolo de status, e é geralmente pedido pelo chefe ou mestre de obras, enquanto a 51 é a escolha dos operários e pedreiros.

O desafio da campanha foi criar uma iconografia e uma narrativa para esse produto sem propor uma brand story falsa, uma narrativa ficcional que usasse a verdade do produto.

A imagem do leão que já existia discretamente na embalagem foi extrapolada, o leão foi proposto como a personificação do consumidor de Domus, aquele que reina dentro do universo do boteco ao lado da obra.

A ideia de criar um personagem foi certeira para a narrativa, mas esbarrava em uma outra questão ética, a mesma do Joe Camel dos anos 80: um personagem lúdico pode atrair crianças a experimentar a bebida.

Sem perder o fio da meada, foi proposta uma abordagem mais sutil que mantivesse a mensagem de fundo. Domus foi posicionado como a escolha do chefe, e a imagem do leão colocada no fundo, uma coisa meio “O Olho de Thundera” que convenceu o cliente na hora. Foram produzidos milhares de cartazes com relevo em vacuum form e espalhados pelos botecos das obras país afora.

Em nenhum momento foi dito que o cognac foi criado por monges albinos, nem que a sua receita atravessa gerações. Só criatividade e um pouco de consumer oriented marketing (só pra jogar um neologismo aí no meio).

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